Se elétrons são partículas que formam a eletricidade e estão em todos os átomos, os múons são seus “primos” mais pesados — cerca de 200 vezes mais massivos — e extremamente instáveis, durando frações de segundo antes de se desintegrarem. Justamente por isso, acelerar e colidir múons em altíssimas energias permitiria sondar a matéria de forma muito mais profunda do que qualquer acelerador atual, revelando estruturas e leis fundamentais ainda desconhecidas da natureza. Esse é o princípio por trás do colisor de múons, a maior aposta da física de partículas para as próximas décadas. A proposta, recém-divulgada por um comitê das Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos, é que o país lidere a construção desse megaprojeto científico, capaz de operar com energia dez vezes superior à do Grande Colisor de Hádrons (LHC), do CERN, na Suíça.
A recomendação surge após três anos de estudos envolvendo 18 físicos de renome internacional — entre eles, cientistas da Universidade de Chicago e do Fermilab, onde o colisor seria instalado. Se viabilizado, o projeto poderá ajudar a resolver alguns dos maiores enigmas da física contemporânea, como a natureza da matéria escura, responsável por 27% do universo, ou entender por que existe mais matéria do que antimatéria, além de aprofundar o estudo do bóson de Higgs, descoberto em 2012. “Estamos no limiar da compreensão da origem da matéria, da energia, do espaço e do tempo”, afirma Michael Turner, físico da Universidade de Chicago e copresidente do comitê.
Por que um colisor de múons?
Diferente dos aceleradores atuais, que colidem prótons (como o LHC) — partículas compostas por quarks e gluons —, o colisor de múons trabalharia com partículas elementares, sem subestrutura. Isso permite colisões mais “limpas”, com menos ruído e maior precisão nos resultados. Na prática, ele combina a alta energia dos colisor de hádrons com a precisão dos colisores de elétrons, algo nunca antes possível. Além disso, ocuparia um espaço físico menor e teria menor consumo energético que os atuais megaprojetos. Mas há um desafio: como os múons se desintegram muito rapidamente, será necessário desenvolver tecnologias inéditas para criá-los, acelerá-los e colidi-los antes que desapareçam. “É transformar o impossível em algo apenas desafiador”, diz Turner.
E o Brasil?
O avanço desse projeto, que deve se consolidar até meados do século, tem implicações que vão muito além da física de partículas. A construção e operação de aceleradores dessa escala são motores de inovação tecnológica em áreas como computação de alto desempenho, inteligência artificial, materiais avançados, engenharia criogênica, instrumentação médica e geração de energia. Historicamente, projetos como o LHC impulsionaram desde o desenvolvimento da internet (originalmente criada no CERN) até tecnologias usadas em tomografias e tratamentos contra o câncer.
Para o Brasil, há dois caminhos claros: assistir de fora — repetindo erros históricos de não integração a megaprojetos de fronteira — ou buscar protagonismo como parceiro científico e tecnológico. O país já domina parte da tecnologia de aceleradores, como mostra o projeto do Sirius, em Campinas, um dos aceleradores de luz síncrotron mais avançados do mundo. Entretanto, participar da próxima geração de aceleradores exige investir em formação de físicos, engenheiros e técnicos especializados, além de estabelecer acordos de colaboração com laboratórios internacionais como Fermilab e CERN.
Um mapa para os próximos 40 anos
O relatório, batizado de “Física de Partículas Elementares: O Higgs e Além”, também recomenda que os EUA participem da futura “Fábrica de Higgs”, projeto europeu que pretende produzir milhões de bósons de Higgs para estudar suas propriedades com precisão. Além dos aceleradores, os cientistas destacam o papel dos experimentos subterrâneos — como o Deep Underground Neutrino Experiment (DUNE), que estuda os neutrinos — e dos levantamentos cosmológicos, que analisam a distribuição de matéria e energia no universo. “A busca por entender o universo no seu nível mais fundamental não é um exercício abstrato”, diz o comitê. “Ela tem gerado tecnologias que moldam a vida moderna, desde imagens médicas até a internet. E continuará fazendo isso.” Se há uma certeza no relatório, é que quem investir hoje nessa fronteira não estará apenas desvendando os mistérios do cosmos, mas moldando as bases econômicas, tecnológicas e sociais do mundo nas próximas décadas.