Em um novo estudo, pesquisadores de Yale desenvolveram um método que tem o potencial de curar a fibrose cística (FC) antes do nascimento. Os resultados sugerem que a doença possa ser curada no útero materno. “Se pudéssemos intervir enquanto os órgãos estão se desenvolvendo, as pessoas seriam realmente curadas da fibrose cística”, aponta Marie Egan, vice-presidente de pesquisa do Departamento de Pediatria e chefe interina de Pneumologia Pediátrica, Alergia, Imunologia e Medicina do Sono na Escola de Medicina de Yale (YSM) e autora correspondente do estudo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.
O estudo foi possível graças a uma equipe multidisciplinar incluindo a primeira autora do estudo, Adele Ricciardi, da Universidade da Pensilvânia; e membros dos laboratórios de Egan, que também é diretora do Centro de Fibrose Cística de Yale; Mark Saltzman, professor de Engenharia Biomédica; Peter Glazer, professor de radiologia terapêutica; e David Stitelman, professor associado de cirurgia pediátrica. A fibrose cística é uma doença genética rara e progressiva que afeta principalmente os pulmões e o sistema digestivo, causada por mutações no gene CFTR. A nova abordagem proposta pelos cientistas consiste em aplicar a edição genética diretamente em fetos, ainda no útero, corrigindo o defeito no gene antes mesmo que os sintomas se desenvolvam. Em testes com modelos animais, os resultados indicaram uma reversão bem-sucedida das alterações associadas à doença, abrindo caminho para uma possível aplicação clínica futura.
Cenário: a Fibrose cística no mundo
Em escala global, a fibrose cística afeta cerca de 100 mil pessoas, com maior prevalência em populações de ascendência europeia. Nos Estados Unidos, cerca de 40 mil pessoas vivem com a doença. Apesar dos avanços terapêuticos nos últimos anos, a expectativa média de vida ainda gira em torno de 40 a 50 anos, dependendo do acesso ao tratamento. Países com triagem neonatal universal e centros especializados tendem a apresentar melhores desfechos clínicos.
No Brasil, a fibrose cística ainda é subdiagnosticada, apesar dos avanços na triagem neonatal. Segundo o Registro Brasileiro de Fibrose Cística (REBRAFC), mais de 6.400 pessoas possuem diagnóstico confirmado, sendo cerca de 74% menores de 18 anos. A incidência média da doença é de aproximadamente 1 caso para cada 10 mil nascidos vivos, com maior prevalência nas regiões Sul e Sudeste. Estimativas indicam, no entanto, que o número real de pessoas afetadas pode ser até duas a três vezes maior, devido a casos não identificados, especialmente em áreas com menor cobertura do teste do pezinho.
Motivação para a pesquisa
Como estudante de graduação no início da década de 1980, Marie Egan foi voluntária no Hospital Infantil da Filadélfia. Ela costumava passar um tempo nas salas de brinquedos do hospital com crianças com doenças graves. Muitas delas tinham fibrose cística, que é uma doença genética letal. “Eu vi essas crianças muito doentes”, lembra Egan. “Naquela época, essas crianças muitas vezes não sobreviviam à infância.”
Hoje, pessoas com FC vivem mais, mas não sem complicações, especialmente nos pulmões, pâncreas e outros órgãos. Ainda não há cura, e o tratamento geralmente consiste apenas no controle dos sintomas. Mas no novo estudo, Egan e vários colegas de Yale descrevem os benefícios de uma nova abordagem para o tratamento e, talvez um dia, até mesmo a cura da doença. Usando edição genética intrauterina, os pesquisadores desenvolveram um método para fornecer material genético corretivo ao feto de camundongos com FC por meio de minúsculas partículas chamadas nanopartículas.
A fibrose cística surge de mutações no regulador da condutância transmembrana da fibrose cística (CFTR). Como é causada por uma única mutação, os pesquisadores a consideraram uma ótima candidata à edição genética, especialmente ainda no útero. A doença pode causar danos graves a órgãos como os pulmões e o pâncreas antes mesmo do nascimento, e o tratamento precoce pode mitigar esses efeitos e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.
“Se você observar os dados atuais, nossos pacientes com FC estão vivendo até a idade adulta ou até mesmo na velhice”, aponta Egan. “Mas a quantidade de terapia que as pessoas fazem, e o custo, são enormes. Se pudéssemos realmente desenvolver uma terapia que pudesse ser aplicada uma única vez e não tivéssemos que nos preocupar com tudo isso, não seria ótimo?”
No estudo, os pesquisadores utilizaram moléculas sintéticas semelhantes ao DNA — chamadas ácidos nucleicos peptídicos, ou PNAs — para corrigir o CFTR. O PNA pode ser ajustado para se ligar a um gene específico que contém uma mutação, induzindo uma lesão que a célula remove. O gene é então corrigido por uma fita de DNA saudável. “Os PNAs podem induzir a edição genética e são adequados para aplicações in vivo porque são facilmente formulados em nanopartículas”, explicou Glazer. As nanopartículas, com tamanho semelhante ao de vírus, foram utilizadas para administrar os PNAs aos fetos de camundongos. Após o nascimento, os animais apresentaram melhora sustentada nos sintomas da FC, inclusive até a idade adulta em alguns casos.
Em última análise, os pesquisadores afirmam que o estudo demonstra o potencial da edição genética intrauterina como terapia única para doenças genéticas. Ainda que mais pesquisas sejam necessárias antes de sua aplicação em humanos, o avanço representa uma mudança de paradigma na abordagem de doenças hereditárias — do controle de sintomas à correção das causas. “Há muito que aprendermos antes que isso aconteça”, afirma Egan, “mas acho que este é um momento incrível, e estamos vendo terapias de edição genética na clínica agora. Definitivamente, existem algumas doenças em que essa abordagem fez uma enorme diferença nos resultados das crianças.”