Durante as enchentes históricas que atingiram o Rio Grande do Sul em 2024, as redes sociais serviram como ferramentas para prestar socorro às vítimas, divulgação de informações e mobilização de voluntários, mas também viraram terreno fértil para a disseminação de desinformação, golpes e exposição imprudente ao perigo em busca de engajamento. O episódio escancarou um dilema cada vez mais presente em tempos de crise: quando a linha entre utilidade pública e espetáculo digital se desfaz, o risco não está apenas nas águas que avançam, mas também na forma como escolhemos nos comportar diante delas — e diante das câmeras. O debate também vem ganhando relevância em outros lugares do mundo, como na Austrália, onde a frequência crescente de enchentes provocadas pelas mudanças climáticas tem revelado uma face ainda mais perigosa da era digital: a exposição deliberada a situações de risco extremo com o objetivo de produzir conteúdo para redes sociais.
Selfies em enchentes: um negócio arriscado
Quase 700 resgates foram realizados em Nova Gales do Sul, na Austrália, durante chuvas torrenciais recentes. Quatro pessoas morreram. Mesmo com alertas oficiais sobre as condições perigosas, vídeos continuam a surgir mostrando indivíduos caminhando por áreas alagadas, dirigindo por estradas submersas ou até escalando árvores e estruturas para filmar rios transbordados. Em um dos casos mais alarmantes, um jovem apareceu em pé sobre um tronco coberto de musgo que atravessava um rio em cheia — um deslize e ele teria sido arrastado pelas águas. Em outro vídeo, uma mulher caminha em meio à correnteza enquanto grava sua travessia. Cenas semelhantes se multiplicaram durante as enchentes em Townsville no início do ano e em episódios anteriores envolvendo ciclones na costa de Queensland, onde moradores chegaram a surfar em ondas perigosas ou nadar em enchentes como forma de entretenimento.
Redes sociais e o culto ao risco
Para especialistas, esse comportamento está longe de ser apenas imprudência. É um fenômeno social que envolve reconhecimento, validação e recompensa algorítmica — a viralização de vídeos de risco transforma indivíduos em personagens de destaque nas redes, ainda que por alguns minutos. “Lesões relacionadas a selfies já são reconhecidas como um problema de saúde pública. Agora, com os eventos climáticos extremos, o risco cresce ainda mais”, alerta Amy Peden, pesquisadora da Escola de Saúde Populacional da Universidade de New South Wales, na Austrália. Segundo ela, há uma falsa sensação de controle e de segurança gerada por vídeos em que tudo termina bem. Isso incentiva o comportamento de imitação e diminui a percepção de perigo, especialmente entre jovens e em comunidades que sofrem de “fadiga de alerta” após múltiplos desastres.
Prevenção além dos avisos
As estratégias convencionais de prevenção — como placas de alerta, barreiras físicas ou zonas proibidas para selfies — têm eficácia limitada. Muitos ignoram os avisos, guiados por uma combinação de hábito digital, busca por visibilidade e a falsa ideia de que “nada vai acontecer”. Por isso, os pesquisadores defendem uma abordagem mais ampla, integrando educação digital, campanhas de conscientização mais diretas e a responsabilização das plataformas. Isso inclui o uso de avisos mais claros, menos técnicos e mais contundentes, além da sinalização de conteúdo perigoso. “A frase ‘área de risco’ pode não significar nada para um adolescente. Já ‘você pode morrer aqui’ comunica com mais clareza”, aponta Samuel Cornell, coautor do estudo.
O papel das plataformas
As redes sociais, argumentam os pesquisadores, também têm responsabilidade. Deveriam sinalizar conteúdos de risco, apoiar campanhas educativas e, em contextos de desastre, promover mensagens oficiais de segurança. Nos últimos anos, algumas plataformas começaram a implementar medidas nesse sentido, mas elas ainda são tímidas frente ao volume e à viralização de conteúdos perigosos.
O que fazer em meio a um desastre
Os autores do estudo alertam: Se você estiver em uma área atingida por enchentes, a primeira orientação é clara: siga os alertas dos serviços de emergência e não entre em áreas alagadas, mesmo que pareçam seguras. E se for registrar algo com o celular: evite se expor ao risco, mesmo por poucos segundos; reflita antes de postar (sua segurança vale mais do que qualquer visualização); não incentive comportamentos perigosos com legendas que normalizam o risco; e use suas redes para o bem: divulgue informações verificadas e ajude a espalhar alertas oficiais.
Os dois concluem enfatizando que transformar tragédias em conteúdo pode custar caro tanto para quem publica como para quem assiste. Em tempos de clima extremo, cada postagem carrega um peso. E, às vezes, uma vida.