Em um mundo cada vez mais orientado por dados, ainda são poucos os líderes capazes de transformar informação em empatia — e empatia em estratégia. Mas é exatamente isso que a médica e professora da Universidade da Califórnia em Berkeley, Coco Auerswald, vem fazendo ao longo da última década com um projeto de pesquisa que desafia o modelo tradicional de atuação sobre um dos temas mais urgentes das grandes cidades: a situação de rua entre jovens.
Em vez de tratar os jovens sem moradia como meros objetos de estudo, Auerswald decidiu trazê-los para o centro da construção do conhecimento. Mais do que respondentes, esses jovens passaram a ser pesquisadores remunerados, participando da formulação de hipóteses, coleta de dados, análise e disseminação de resultados — sempre com suporte financeiro, emocional e técnico.
A abordagem colaborativa levou ao surgimento do Youth and Allies Against Homelessness, programa que, desde 2018, envolveu mais de 100 jovens na estruturação de pesquisas e propostas de políticas públicas. Em 2021, por exemplo, os jovens identificaram um problema invisível: políticas da pandemia que ajudavam “população em situação de rua” frequentemente não contemplavam os jovens — e as que visavam a juventude ignoravam os sem-teto. Resultado: um grupo inteiro caiu em lacunas institucionais, com impactos reais em sua segurança alimentar, educação e saúde.
O método que derruba premissas
“O que esse trabalho nos ensina é que muitas das perguntas que fazemos como pesquisadores ou gestores são simplistas”, afirma Auerswald. “Quando você traz a experiência vivida para dentro do processo, descobre camadas de complexidade que passariam despercebidas. Você desmonta suposições.” Essa escuta qualificada, ancorada em metodologias formais de pesquisa, produziu relatórios e diretrizes que passaram a influenciar políticas públicas nos EUA — e se tornaram referência também no meio acadêmico. A Larkin Street Youth Services, organização de San Francisco voltada à juventude em vulnerabilidade, homenageou a professora em 2025 por sua contribuição à mudança sistêmica.
Além de impactar políticas, o programa mudou trajetórias individuais. A jovem Sahra Nawabi, que participou como estagiária por mais de três anos, foi contratada oficialmente pela universidade em janeiro deste ano. “Quando os jovens compartilham suas ideias e experiências com base em evidências, a comunidade ouve de outro jeito. Eles deixam de ser vistos apenas como ‘casos sociais’ e se tornam autores da mudança”, afirmou Nawabi.
Lições para empresários brasileiros
A experiência de Berkeley pode parecer distante à primeira vista — mas oferece lições práticas e profundas para o setor empresarial brasileiro, sobretudo no que tange à agenda ESG e ao papel social das lideranças corporativas.
- Contratar pela vivência, não apenas pelo currículo: quantos programas de trainee, inovação ou impacto social no Brasil realmente consideram pessoas que viveram as dores que se deseja resolver?
- Transformar beneficiários em protagonistas: o envolvimento genuíno de públicos vulneráveis nas decisões sobre produtos, serviços ou políticas corporativas pode ser um divisor de águas em resultados e reputação.
- Investir em escuta estruturada e remunerada: pagar pelo tempo e conhecimento de jovens em situação de vulnerabilidade não é caridade — é reconhecimento de expertise. E pode gerar inovação real.
- Reduzir o “housismo corporativo”: como chamou Auerswald, a ideia de que pessoas em situação de rua são menos humanas se manifesta, também, nos corredores corporativos — na exclusão silenciosa de vozes, corpos e histórias que não se encaixam no “perfil desejado”.
“Assim como qualquer outro jovem, eles querem educação. Eles querem um futuro”, lembra Auerswald. A diferença está em quem está disposto a dar um passo além do discurso e abrir espaço — de verdade — para que isso aconteça.